Desde 2008, quando comecei a trabalhar mais ativamente com a discussão do consumismo na infância, abrangendo necessariamente o direcionamento da publicidade a crianças, em especial de produtos alimentícios, a questão dos ovos de páscoa sempre chamou a atenção. Foram diversas as denúncias ao Ministério Público de vários estados, relatando abusividades em peças publicitárias e ações promocionais de páscoa. Nesse contexto, todas as vezes que debati com o setor regulado “a questão dos ovos de páscoa”, alguns argumentos sempre vinham à tona:
A páscoa é um período muito específico, a venda de ovos de chocolate é sazonal e eventuais excessos são normais nesse período; o direcionamento de publicidade para crianças nessa época seria algo quase que “natural” ou óbvio, na medida em que o principal público alvo de ovos de chocolate são as crianças; o licenciamento em ovos de chocolate é algo que faz parte do mercado e é importante para ajudar as crianças a escolherem seus ovos preferidos; não há problemas em se criar coleções de brinquedos, acompanhando os ovos de páscoa. Isso não incentivaria o seu consumo nem traria problemas alimentares, considerando que a comercialização de ovos ocorre em um período determinado e limitado no ano.
De fato, não há mesmo como discordar que ovos de páscoa são produtos sazonais e que as crianças são o principal público. A minha infância foi recheada de ovos de páscoa. Mas, não me lembro de ter ovos com “marca e gênero”. Não havia muita diferenciação entre “ovos de meninos e de meninas”. Um ovo era bom quando a gente chacoalhava e adivinhava os variados sabores dos bombons que estavam dentro.
No Brasil, a sensação é que a cada ano que passa, os ovos começam a ser anunciados e vendidos cada vez mais cedo. Também são cada vez mais segmentados, eles têm sexo. A maioria dos ovos apresentam coleções de brinquedos e, no curto período entre carnaval e páscoa, a criança é incentivada a colecionar sem parar. Parece que na nossa cultura mercantilizada dos dias de hoje, meninos e meninas estão aprisionados nestes padrões. É o que devem desejar, é como devem brincar e se divertir. Acho que não é justo que o modo de viver a páscoa difundido pelo mercado contribua para homogeneizar e estratificar a infância e os brincares.
Em outros países a realidade se mostra bem diferente, com uma infância que não é inundada por publicidade e licenciamentos – e pasmem, a vida continua, o mercado é ativo e a economia forte. Montreal, que pertence à região do Quebec, no Canadá, conta com estrita regulação da publicidade infantil. Ano passado, quando desembarquei em Montreal, logo depois do carnaval, demorei a perceber que a páscoa se aproximava. Discretas decorações começaram a povoar praticamente todas as vitrines, com alusões a coelhos e galinhas, mesmo em lojas de roupas e móveis. Mas tudo muito sutil, nada ostensivo. Nada de túneis de ovos. Nada de ovos gigantes. Sobretudo, nada de ovos com personagens licenciados. Ao contrário, pequenos coelhos e cestinhas com ovinhos, produzidos nas chocolaterias e espalhados pelas lojas. Os preços são razoáveis, ou seja, custam algo em torno do que um chocolate, mais ou menos daquele mesmo peso, custaria – bem diferente do que ocorre no Brasil, em que a cada ano os valores cobrados pelos ovos parecem mais altos e abusivos. As publicidades, em geral, fazem alguma referência a coelhos, mas são imagens de coelhos de verdade e não animações. No fim, não dialogam diretamente com as crianças. Ao mesmo tempo, acho difícil discordar que o Canadá conta com uma economia forte e com um mercado aquecido.
Será que as crianças brasileiras são mais felizes com os túneis de chocolate, as disputas por formarem as coleções de brinquedos e os ovos enormes? Tenho cá meus questionamentos. Afinal, o que comemoramos nesse período? A páscoa não é um momento celebrado apenas no catolicismo. Outras religiões contam com algum tipo de celebração. De alguma forma, as referências são fortes a momentos de transição e renovação. Os ovos mesmo seriam um símbolo disso.
Pensando assim, seria possível vivermos a páscoa com mais liberdade? Com liberdade para as crianças comerem muito chocolate, sem dúvida, mas também para brincarem e curtirem o momento de forma mais independente das estritas regras impostas pelo mercado? Acho que sim. Já foi possível um dia, é possível em outros países.
* Tamara Amoroso Gonçalves é advogada graduada pela PUC/SP e mestra em Direitos Humanos pela USP.